27/03/2015 - Maré e Alemão: As Forças Armadas na segurança pública no contexto pós-Haiti

 Diogo Monteiro Dario* No dia 5 de abril completará um ano que a Força de Pacificação composta por membros do Exército e da Marinha do Brasil ocupa o Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. Esse mês também marca o início de sua desmobilização parcial e da introdução das Unidades de Polícia Pacificadora na área. Até junho, quando os militares se retiram definitivamente, serão 15 meses de presença militar na Maré. Somados aos 18 meses no complexo de favelas da Penha e do Alemão, essas duas operações caracterizam, de longe, as mais longas e complexas empreendidas por militares dentro do território nacional para tarefas de segurança pública. Elemento fundamental nessa mudança é a participação por mais de 10 anos das Forças Armadas (FAs) na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH).
Mas quais são as implicações para o papel que as FAs cumprem na segurança pública, e o que isso significa para as pessoas vivendo naqueles espaços que cada vez mais têm que se adaptar à dinâmica da ocupação militar? Exército em ocupação no Complexo do Alemão. Foto: Divulgação O historiador José Murilo de Carvalho argumenta que um dos problemas centrais para as FAs no Brasil é a capacidade de manter seus recursos e pessoal em atividade. Por não ter uma ameaça externa tangível e crível para o público doméstico nacional, atribuir a eles exclusivamente a tarefa da defesa externa poderia condená-los ao desemprego estrutural. Essa era uma preocupação central das corporações militares já no momento da redemocratização do país. É nesse contexto que o então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, exerceu pressão sobre o presidente Sarney e a Assembleia Constituinte para que a "garantia da lei e da ordem" fosse mantida como parte da missão constitucional das FAs. Esta seria subsidiária de suas atribuições mais fundamentais, como a proteção do território e a garantia dos poderes constitucionais, conforme consta no artigo 142 do documento. A credibilidade da qual os militares ainda gozavam fazia com que grupos da sociedade brasileira os vissem como instrumentos importantes para a preservação da ordem doméstica, mesmo no contexto democrático. Mas ao longo dos últimos 27 anos alguns episódios apontam para dificuldades políticas e legais nessa no exercício desse papel. A primeira grande operação de segurança pública das FAs na redemocratização foi em novembro de 1994 ("Operação Rio"), quando o exército chegou a ocupar cinco favelas simultaneamente, tendo como objetivo principal a captura de um traficante de drogas conhecido como "Uê". Na ocasião, houve reiteradas reclamações de ilegalidade por parte dos moradores das favelas ocupadas, o que levou a uma declaração pública da OAB criticando a operação e a uma verdadeira guerra judicial entre esta e o governo do Estado em torno da operação. Outro episódio importante foi a chamada "Operação Abafa", em março de 2006, quando o exército investigava o roubo de onze armas ocorrido em uma instalação militar. O que deveria ser um inquérito policial-militar corriqueiro escalou para uma operação de mais de 1.200 homens em uma série de intervenções conduzidas em 10 diferentes favelas. Mais uma vez, não só a OAB como o Ministério Público se opuseram à política do Estado, com o Ministério afirmando que a atuação do exército era inconstitucional, configurando uma intervenção federal ilegal. O que marcou essas e outras intervenções no Rio de Janeiro foram os diferentes conflitos produzidos sempre que a opção militar era lançada. Primeiramente, ela invariavelmente enfraquecia o governo estadual em questão, porque era um "recibo" da sua incapacidade de lidar com o problema da segurança pública. Além disso, a possibilidade da intervenção colocava a opinião pública a favor da presença dos militares, mas nos locais onde os mesmos atuavam os protestos contra a ação eram constantes, assim como a mobilização dos advogados contra o governo. Os próprios militares demonstravam impaciência e insatisfação de estarem tendo que mobilizar suas tropas para resolver o problema alheio. A crítica de que o contato com a Polícia Militar e o tempo de permanência num determinado lugar corrompia os soldados era comum, e havia a preocupação de retirar as tropas o mais rápido possível para evitar o desgaste político. Porém, já no momento da Operação Abafa, um conjunto de eventos relativos à participação do Brasil em Operações de Paz seria fundamental para a modificação do papel das FAs. O Brasil contribui para as operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 1956. Contudo, essas contribuições eram muito modestas, privilegiando países com os quais o Brasil tem laços culturais ou interesses econômicos- como Timor Leste, Angola e Moçambique- e se atendo a missões que contem com o consentimento das partes e só autorizem o uso da força em caso de auto-defesa. O Brasil resistia a apoiar as chamadas operações de "imposição da paz", que caracterizam o cenário da intervenção como uma ameaça à paz e segurança internacionais e podem não contar com o consentimento dos envolvidos. Isso porque o Ministério de Relações Exteriores brasileiro, o Itamaraty, buscava construir uma imagem de respeito aos princípios da soberania e da não-intervenção. Em 2004, a derrubada no Haiti do governo do presidente Jean-Bertrand Aristide levou o país a uma situação de guerra civil, e o Conselho de Segurança da ONU aprova a criação da MINUSTAH, uma missão de imposição da paz e que previa o uso da força. Os Estados Unidos, país diretamente envolvido nos eventos, já lutavam simultaneamente em dois teatros de operações- Iraque e Afeganistão, e a França (ex-potência colonial) já tinha tornado de conhecimento público que considerava o Haiti um caso perdido que não valia o desgaste político. Nesse contexto, o presidente Lula vê na situação uma oportunidade de estender o papel brasileiro dentro do sistema ONU e reforçar a antiga aspiração nacional a um assento permanente no Conselho de Segurança. Desse modo, o Brasil não só contribuiu com o maior contingente para uma operação até então, como indica um general brasileiro para o comando militar da missão. Essa mudança de posição requeria uma negociação com grupos domésticos e os setores militares. Muitos não achavam que as tropas brasileiras estavam preparadas para aquele tipo de operação ou que aquela fosse uma prioridade para a promoção do interesse nacional. Mas passaram a ver MINUSTAH não somente sob a perspectiva de um novo papel internacional, mas também da consolidação de seu papel doméstico. Em maio de 2004, quando o envio das tropas ao Haiti estava sendo debatido no Congresso, o ministro da Defesa defendeu a operação argumentando que ela proveria importante treinamento para as FAs nas operações de "garantia da lei e da ordem" em lugares como o Rio de Janeiro. Complexo do Alemão. Foto: DivulgaçãoA propaganda do governo Lula em torno do novo papel internacional do Brasil fez com que a MINUSTAH reforçasse a credibilidade dos militares dentro do país. Essa conexão já sugerida pelo ministro em 2004 viria a ser claramente estabelecida em 2010, quando um conjunto de eventos levou o governo do Estado do Rio de Janeiro a pedir ao Governo Federal o envio de tropas numa operação de apoio ao projeto de pacificação da cidade iniciado em 2008. A Força de Pacificação dos Complexos do Alemão e da Penha seria composta por militares que serviram anteriormente na MINUSTAH, transformando a missão em importante laboratório para os militares, e em fortes credenciais para sua atuação em teatros de operações, como as favelas cariocas. Ela era também mais institucionalizada que as intervenções anteriores das FAs, com um conjunto de regras de engajamento claramente estabelecido que tornava mais difícil sua contestação no campo legal. O mesmo procedimento foi seguido em 2014 na assinatura do decreto presidencial que autorizou a intervenção no Complexo da Maré. Nesse caso, a experiência do Alemão também mostrou que o prazo marcado para a retirada dos militares se torna um foco de tensão. A resistência contra a atuação da força tende a se intensificar nesse momento e isso fez com que a presidente Dilma, preventivamente, desse ainda mais autonomia ao comandante da missão; deixando claro publicamente que era o planejamento militar que determinaria a extensão da missão e a retirada das tropas. O que chama a atenção nesse novo quadro é o contraste com as operações anteriores. As de 1994 e 2006 se tornaram quase imediatamente problemas políticos que enfraqueceram os governos estaduais aos quais estavam associados- casos de Leonel Brizola e Rosinha Garotinho. Enquanto isso, as que foram conduzidas pelos governadores Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão duraram mais de um ano, foram requeridas pelos próprios e consolidaram o discurso da política de pacificação. Os protestos da população contra a intervenção, verificados em ambas as localidades, em momento algum encontraram repercussão na opinião pública. O uso da experiência do Haiti para legitimar a intervenção militar em território nacional aponta para um processo de consolidação do uso das FAs como um instrumento regular de segurança pública. Contudo, por mais que tente adaptar seu procedimento ao uso proporcional da força, a construção no espaço urbano de um teatro de operações militar gera inúmeros constrangimentos aos cidadãos que ali residem. Numa cidade como o Rio de Janeiro, que tem se estruturado em torno da preparação para receber "grandes eventos", o uso das FAs pode virar instrumento permanente de administração de crises, em que os moradores das áreas violentas da cidade pagam o preço de serem submetidos a um estado recorrente de exceção toda vez que o governo estadual se mostrar incapaz de encontrar respostas viáveis para os problemas de segurança pública. Os protestos da Maré em fevereiro e os novos indícios de que a situação no Alemão não está controlada mostram que problemas persistem, o calendário de "grandes eventos" continuará demandando respostas rápidas, gerando apreensão quanto às opções para o futuro. *Diogo Monteiro Dario é professor de Relações Internacionais da PUC-Rio em colaboração ao SRZD.

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